sábado, 23 de maio de 2009

Herança de Fim de Vida

A tragédia de uma vida despenco agora, em mil palavras (ou menos de mil, não detalharei, perdoem-me por isso, mas não é plausível dois pontos ou mais nessa infame lastima), que peço, por favor, atenção nenhuma, vou só desperdiçar aqui (mais por falta de companhia que por consolo) o que me resta ainda em pedaços de mim: Papel e pena.
Pena eu não ter vos conhecido antes de estar tão perto do meu fim, embora eu pouco me importe com isso de fim, na verdade eu já me conformei. É bem comum conformar-se depois de anos num asilo (qual carinhosamente chamam de ‘Casa de Repouso’).
Quanto se tem mais de 70 anos a ironia se torna algo tão corriqueiro que chamar um asilo onde velhos são abandonados de Casa de Repouso é o mesmo que criar uma clinica clandestina de aborto e por nome de Clinica de Aborto Anjinhos de Deus.
Desculpe as criticas, não quero desfechar opiniões aqui, essa não é a intenção, a verdade meu leitor (se você existir e ainda estiver lendo essa nota), é que minha vida nunca foi vivida... Pelo menos não por mim, só vivi até os 15, depois já não me lembro.
Ah, por logo deixo claro que não vou obrigar-te a identificar-se com meus contos, mas não tenho parentes ou amigos vivos e minha herança eu preciso acabar por passá-la, ainda que seja uma pequena história medíocre a um estranho derrotado como eu, por que cá entre nós, alguém que pára pra ler-me a essa altura e com toda essa minha cegueira (mal enxergo as talhas do papel ao deslizar por ele a pena) só sendo mesmo um derrotado.
Em todo caso, caro, não fique triste comigo por chamar-te assim, saiba que a vida é mesmo tirana e todos nós sofremos de perdas e derrotas, claro que uns mais, assim como você e eu, há-há.
Desgraça vivi por sempre, mesmo sem viver por mim, meu deus, como amei!
Sabe aquele dito ‘ruim com ele, pior sem ele’? Falaram-me quando eu era jovem que diziam de homens, de sexo, mas na verdade esse dito foi feito pro amor. E a culpa de minha velhice estar em Casas de Repouso é toda dele, do tal do amor.
Quando o vi pela primeira vez eu tinha apenas a juventude estampada nos olhos e livros lambidos de mal-do-século.
Ela riu-me e deu-me uma flor e me chamou de flor de sua laranjeira, agarrou-me pelas pernas, e eu mesmo sem nenhum preparo físico não senti câimbra alguma em correr kilometros de alma ao lado daqueles cabelos castanhos e pele com pintas.
- Uma observação sobre as pintas da moça: Uma tirava-me o fôlego, a que ela guardava do lado direito do pescoço.
Não houve toques íntimos, só os íntimos de alma, afinal. Fazia-me feliz ainda que não tocasse minha pele, juro por Deus que por vezes quis arrancá-lo de mim (o amor, falo), porém eu não queria arrancá-la de mim (agora falo da moça pequena, de cintura fina e quadril vantajoso).
No final de um ano estava presa a eles (ao amor e a moça) como capim preso a terra, como linha costurada no corte mais detalhado de um espartilho encarnado, e confesso, como me fazia bem segurar firme sua cintura, estar perto de seus seios, deitar em seu colo, Deus, era um vicio.
Não posso detalhar-me mais, mas vivi por sempre como colchete e espartilho de moça.
Vou resolver logo por pontos aqui, já que minhas mãos cansaram-se e não cabem vírgulas numa prosa arruinada.
Veio de mim um outro qual guardara anos, e dona-de-mim foi-se com ele por lados quais não quis saber quais eram.
Gritar, soprar fogo ou quase, morrer por mim ou algo que o valha, tentei, mas não consegui feito algum que sarasse minha dor.
Depois que se foi vieram moços requintados, abusados, moças loiras, moças recatadas, e moças e moços e de pele não faltou pra minha pele, porém minha alma sentia frio sem a cintura da flor de laranjeira em deslizar por meus dedos.
Não querendo viver de alma cansada e nem de mal-do-século eis que vi a solução:
Guardei-me em mim.
Eu só tenho 16 (quase 17) e minha idade é de pra lá de 70, que conseqüência roubou de mim aqueles cachos! Por hora eu envelhecia meses, por dias anos, por anos décadas, por fim asilei-me numa Casa de Repouso e semana passada tatuei-me com os dizeres:
- Flor de Laranjeira, já que não te vai fica logo em mim.


Se lestes o fim, deixo aqui um grande amplexo por ter sido leitor atencioso e companhia corajosa. Desculpe-me pela vulgaridade de omitir detalhes, mas minha memória não me deixa lembrar a fim de guardar a integridade física do meu corpo enrugado.


Acabo de escrever em papel com pena fina e tinta preta a introdução do fim de minha vida, Ingrid Regina, mal vivida da silva ou algo que o valha.

Um comentário:

Cássia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.